Como era mais do que previsível, acordámos segunda-feira com um país ingovernável. Era previsível para qualquer um, mas especialmente para alguém como Marcelo Rebelo de Sousa, que passou uma vida inteira a acumular fama e proveito como imbatível leitor e construtor de cenários políticos, capaz de ler nos astros o que o comum dos mortais ainda não tinha descortinado na parede em frente. Deixemo-nos, pois, de meias-palavras: Marcelo não tem desculpa. Estamos como estamos porque ele assim o quis.
No “Público”, e na esteira de vários outros, Manuel Carvalho escreveu que “o prenúncio desta degradante democracia liberal estava à vista quando uma maioria se extinguiu à luz dos indícios de corrupção”, pelo que “Marcelo fez o que a sua consciência lhe ditava e que o grosso da opinião publicada lhe exigia”. Pois, o problema é que o grosso da opinião publicada tomou por indícios de corrupção o que não leu com atenção ou não percebeu, e, no mais, um Presidente deve guiar-se por aquilo que, em cada momento, quer a opinião pública, e não a opinião publicada. Até porque, em contrário, há quem diga mesmo que foi Marcelo quem sugeriu a Lucília Gago que introduzisse no comunicado da Procuradoria-Geral da República o tal parágrafo que ambos sabiam que levaria à imediata demissão de António Costa. Eu não acompanho essa teoria da conspiração ou do maquiavelismo, mas continuo a perguntar-me o que se terá passado na conversa entre o Presidente e a procuradora-geral que antecedeu a demissão do primeiro-ministro: terá Marcelo exigido saber, como lhe competia, o que havia de sólido nas suspeitas em relação a António Costa? E, em face disso — que era nada, como concluiu o juiz de instrução —, conformou-se com a execução pública do PM às mãos da PGR e com a sua demissão? Isto feito, e mal feito, com que legitimidade constitucional optou por recusar o nome indicado por António Costa para lhe suceder na chefia do Governo ou, em alternativa, pedir ao PS que indicasse um nome, como se faz em todas as democracias normais? Quem disse a Marcelo que em 2022 os portugueses tinham votado apenas em António Costa, e não também no PS, e que, se por qualquer razão ele não terminasse o seu mandato, preferiam eleições antecipadas e desembocar na situação que temos agora? A que deve ele obediência: às suas inclinações partidárias, às suas interpretações políticas ou às regras da Constituição da República? E, já agora, para que lhe serviu a opinião de um Conselho de Estado rigorosamente dividido a meio sobre o caminho a seguir? Apenas para o desprestígio acrescido de ver dois dos conselheiros, por si nomeados e ligados à AD, votarem pela convocação de eleições e depois aparecerem a fazer campanha eleitoral pela mesma AD...
Não, Marcelo não tem desculpa. Trata-se de alguém que passou anos a defender o valor da estabilidade e da previsibilidade dos mandatos levados até ao fim. Que, nos últimos dois anos, disse e repetiu que nada poderia pôr em causa o ritmo de execução do PRR — a última grande oportunidade de financiar o desenvolvimento do país com dinheiros europeus —, chegando a dizer a uma ministra que não lhe perdoaria um só dia de atraso. E, afinal, manda tudo ao charco em duas penadas e cavalgando uma insustentável ficção processual do Ministério Público relativamente ao PM — que, isso sim, devia preocupá-lo, e muito. Interrompe uma governação antes ainda do meio do seu termo, paralisa o país durante meses, lançando o alerta em Bruxelas, e dá-se ao luxo de deitar borda fora aquilo que qualquer país europeu hoje mais preza: uma maioria absoluta de um partido dentro do sistema democrático. Hoje podíamos ter à frente do Governo alguém como Mário Centeno, o nome que António Costa levou a Marcelo e que este recusou: alguém que nem sequer era filiado no PS, que conhecia o Governo e as finanças, que tinha provas dadas aqui, conhecimento e prestígio lá fora. O país não teria parado, o PRR e os principais dossiês não estariam paralisados e, sobretudo, aqueles que ainda se esforçam por acreditar num futuro para Portugal não experimentariam mais uma vez a decepção de ver a vida a andar para trás, a sua e a de Portugal, porque lá em cima se anda a brincar com coisas sérias para satisfação de protagonismos ou de impulsos infantis.
Mas não é apenas a instabilidade governativa que eu não perdoo a Marcelo. Mais ainda do que isso, o que não lhe perdoo é ter soltado a besta presa na cave, a besta da demagogia: o Chega. Por mais análises que me forneçam sobre as razões sociológicas e políticas do milhão e cem mil votos do Chega, algumas certamente pertinentes, há uma que desde logo o justifica: a compra de votos. O Chega comprou votos, comprou muitos votos, e comprou-os com uma campanha de demagogia despudorada e irresponsável. Contem-nos: nas forças policiais e respectivas famílias são 100 mil; nos reformados, a quem prometeu, pelo menos, uma pensão equivalente ao salário mínimo, mesmo para quem não contribuiu, serão uns 300 mil; nos professores, a quem prometeu tudo o que reclamam, dos 120 mil terão cativado uns 30 mil; nos agricultores outro tanto, e por aí fora, tudo junto somando metade do milhão e cem mil votos de André Ventura. Num país onde tantos se habituaram a exigir tudo do Estado e tão poucos se perguntam quem e como pagará, o discurso de Ventura está condenado ao sucesso, muito mais do que o racismo, a xenofobia, o autoritarismo e tudo o resto a que, por preguiça, gostam de o reduzir. O sucesso eleitoral de André Ventura chama-se demagogia à solta, e o pior de tudo é que, por competição e por sobrevivência, ele contagiou em larga medida todos os outros. Como aqui escrevi há duas semanas, o rol de promessas eleitorais, associado à conjuntura internacional, torna Portugal ingovernável: ou porque não serão cumpridas e serão então cobradas nas ruas e nos serviços públicos, ou porque serão cumpridas e nos levarão à falência.
Quando recusou a solução de estabilidade governativa que o país esperava e que ele próprio tinha apregoado durante tanto tempo, preferindo antes lançar o país numa aventura eleitoral desnecessária e de efeito previsível, Marcelo sabia ao que ia. Mas não se conteve, porque há muito que ele ia dando sinais de incontinência, aliás com ameaças explícitas. E não venham cá com o desgaste dos “casos e casinhos”, porque no mais grave deles — o caso Galamba, onde Marcelo entrou em choque frontal com o PM, exigindo publicamente a demissão do ministro — ainda estou para perceber qual é a responsabilidade de um ministro que demite um assessor que se recusou a entregar uns documentos exigidos por uma Comissão Parlamentar de Inquérito e depois, sem mais qualquer intervenção da sua parte, vê o assessor invadir à força o gabinete, roubar o computador de serviço e levá-lo para casa, só o devolvendo a um agente do SIS e por intervenção de outro membro do Governo. Mas, ainda que a razão fosse os “casos e casinhos”, a renovação do Governo com a indigitação de outro PM, e exterior ao PS, esvaziava o argumento.
Não, a verdade é outra: o cargo deve ser profundamente aborrecido para quem gosta de viver a vida. O primeiro mandato presidencial acredito até que possa ser estimulante e apelativo: andar por aí a conhecer o país e as pessoas, dar beijos e abraços, ser recebido com a despreocupação de quem só pode prometer o bem e não fazer o mal, viajar lá fora e conhecer os grandes do mundo, escutar o hino com a herança de quase nove séculos às costas. Mas, isto passado, o segundo mandato é mais do mesmo e, sendo o tédio mau conselheiro, a tendência para a asneira torna-se inevitável. Mas nenhum resiste à tentação do segundo mandato, nem mesmo alguém como Mário Soares, que tinha tão mais vida do que aquela que cabia nas paredes de Belém. No primeiro mandato vimos o melhor de Marcelo, um contagiante suspiro de alívio depois dos anos de chumbo da majestade cavaquista; no segundo, estamos a assistir ao seu pior, à facilidade com que os grandes princípios degeneram numa absoluta vacuidade. Prejudicial ao país. Mas, enquanto o tempo não passa e isto não tem fim, fica a pergunta a que só ele tem obrigação de responder: e agora, Sr. Presidente, como é que nos tira desta embrulhada onde nos meteu? Dia 15 de Março, sexta-feira, cinco dias depois do acto eleitoral, ainda nem sequer sabemos quem ganhou as eleições e se quem ganhou quer mesmo governar.