sexta-feira, 21 de junho de 2024

As lições de J.Edgar Hoover

As Lições de Hoover. A Crónica de Daniel Oliveira no Expresso. 20.06.2024. As lições de Hoover J.Edgar Hoover, diretor do FBI entre 1935 e 1972, tinha dossiês sobre políticos que usava quando os queria atemorizar ou destruir. O objetivo não era garantir a segurança interna, mas o seu próprio poder. Fazia-o sem consequências para si, porque ultrapassou o limite de poder que a lei consegue conter. E assim, sem nunca ter ido a votos, teve um razoável controlo sobre a política norte-americana durante 37 anos. O pretexto era o comunismo, mas podia ter sido a corrupção. E o que acontece com pessoas que concentram demasiado poder também pode acontecer com instituições ou corporações. É por isso que a defesa da democracia vive da tensão permanente entre poderes que se contêm mutuamente. A naturalidade com que se leram e debateram transcrições de escutas telefónicas de conversas estritamente políticas entre um primeiro-ministro e o seu ministro é a demonstração de que isso deixou de funcionar em Portugal. As escutas por arrastão a João Galamba, durante quatro anos, precisaram de muitas dezenas de assinaturas de juízes, porque a matéria escutada tem de ser apresentada quinzenalmente. E, no entanto, era evidente que elas não podiam ter a função que a lei lhes dá. A divulgação da conversa de Costa com Galamba sobre o despedimento da CEO da TAP deixa clara a função que inevitavelmente acabaria por ter. Porque já não estamos perante um instrumento de investigação e prova, mas perante um sistema de vigilância política. Foi um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de há três anos, que resultou de um recurso do Ministério Público (MP) contra outra decisão do STJ, que determinou que estas escutas se poderiam manter nos autos, mesmo sendo estranhas à investigação e ao processo. Desde que não entre na mais escabrosa intimidade dos escutados, é para continuar a guardar no grande arquivo do Big Brother. Esta leitura extensiva da lei permite, na prática, que o MP vá concentrando toda a informação política do Governo e da oposição, escutando toda a gente e guardando tudo o que possa ser politicamente comprometedor, mesmo que seja criminalmente irrelevante neste ou em qualquer outro processo. Porque decidiu assim o Supremo? Porque o populismo, de que o justicialismo é filho predileto, não ronda apenas as mesas dos cafés. Infetou as intuições, espalhando-se por tribunais e redações. Como aconteceu no Brasil, trepou até ao topo da hierarquia, rebentando com os diques democráticos que levámos séculos a construir. Só nos regimes totalitários se anula o núcleo mínimo de privacidade dos cidadãos. Mas num tempo em que o exibicionismo e o voyeurismo são a principal matéria-prima do negócio das maiores multinacionais, que gerem as redes sociais e que estão a formatar um novo mundo, é difícil explicar porque é que as escutas são uma forma extrema de intrusão do Estado na vida dos cidadãos, incluindo conversas entre políticos, de magistrados com colegas ou de jornalistas com as suas fontes. A máxima de que “quem não deve não teme” é a derradeira cedência do direito à individualidade, de que a privacidade é um instrumento central. No entanto, ela nunca foi tão popular. Só que, neste caso, não está apenas em causa a privacidade, mas a instrumentalização do poder judicial para assuntos políticos. Com esta cultura dominante, está instituída, nas redações, a ideia de que tudo o que tenha a ver com políticos é publicável. Esta anulação da ética e da deontologia, em nome da defesa de um poder absoluto dos jornalistas, é anulação da função social do jornalismo e, portanto, do próprio jornalismo. Mas a ausência de escrúpulos travestiu-se de corajosa luta contra os “poderosos” e tornou-se num produto de grande sucesso na indústria da indignação. Reparem que estas escutas não saíram apenas no momento em que António Costa negociava a presidência do Conselho Europeu, numa exibição de poder de quem quis mostrar ao ex-primeiro-ministro e ao país que a corporação continua a pôr e dispor da vida de todos, por mais poderosos que se julguem. Saiu no dia em que um novo canal de notícias se estreava. A divulgação das escutas enquadra-se numa guerra comercial que nada tem a ver com o jornalismo. Na perversa relação da comunicação social com o MP o que está em causa é mais profundo do que a capacidade de os jornalistas selecionarem com rigor a informação que recebem. Está em causa uma relação promíscua que impede a atividade jornalística. Uma parte dos jornalistas especializados em justiça passou a ser mera recetora de informação de fontes quase únicas. A moeda de troca é a ausência de escrutínio. É uma relação de absoluta dependência perante fontes que, abusando da lei, oferecem o material que alimenta a feroz luta por audiências. Com a comunicação social neutralizada por esta dependência, com o temor cobarde dos políticos e com a conivência de alguns juízes, o MP vai sendo cada vez mais audaz. Até ao dia em que, num mar de lama onde só se salva quem se confunde com ela, alguém se proponha pôr ordem na desordem, moral no regabofe, grilhetas na democracia. No fundo, estão todos a trabalhar para isso.

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