quarta-feira, 4 de março de 2009



Com a devida vénia a Miguel Sousa Tavares, tomo a liberdade de transcrever a sua crónica “Somos tão modernos” publicada na última edição do “Expresso” (28.02.09).

Sinto-me agora mais reconfortado por ver que existem pelo menos duas pessoas neste país que encaram o Carnaval (e outras manifestações de “modernismo”) da mesma forma (mas no meu caso, sem o brilhantismo e a ironia da escrita de MST).

Somos tão modernos

Durante uma boa hora, pelo menos, viveram-se momentos de grande frisson e entusiasmo nas redacções do país: uma notícia de contornos pouco claros (deliberadamente, como se perceberia depois), dava conta de que uma paródia com o Magalhães no Carnaval de Torres Vedras tinha sido proibida. Logo uma legião de mártires pelo jornalismo, desde veteranos sem causas a jovens sem qualquer formação profissional, viu ali uma oportunidade de ouro para sair a espadeirar contra mais uma demonstração do arbítrio e prepotência do Governo. O Governo atrevia-se a proibir piadas de Carnaval ao seu Magalhães - que luxo para o 'jornalismo de combate', que fantástico pretexto para defender a liberdade de opinião ameaçada! E logo com o Magalhães, que, não sei porquê, desde que apareceu é o mal-amado dos bem-pensantes - apesar de ser dos raríssimos casos de um produto tecnológico de valor acrescentado em Portugal, de constituir uma potencial fonte de receitas externas para o país e apesar, sobretudo, de significar a possibilidade de centenas de milhares de jovens alunos saltarem directamente e quase sem custos para a era informática. Vinha mesmo a calhar a censura do Governo às piadas sobre o Magalhães! Afinal, descobriu-se rapidamente, e desfeito o nevoeiro inicial artificialmente criado para atrair as atenções da imprensa, não era nada disso o que tinha sucedido. Uma vulgar cidadã de Torres Vedras, no uso de um vulgar direito de cidadania, queixara-se ao Ministério Público da comarca que as imagens projectadas no ecrã do Magalhães que iria desfilar no corso da terra tinham, em sua opinião, conteúdo pornográfico. E a delegada do Ministério Público, bem ou mal (desconheço as imagens), deu-lhe razão e mandou retirá-las. Logo depois, e ainda a tempo de aparecer nos telejornais da noite, o presidente da Câmara de Torres Vedras desdobrava-se em entrevistas para as televisões, denunciando a censura, o direito violado ao humor, o atentado à liberdade de imprensa e ao prazer dos cidadãos. O homem conquistara os seus quinze minutos de fama e o Carnaval de Torres uma excelente e grátis promoção em horário nobre. "Chico esperto!", pensei para comigo. No dia seguinte, à beira da crucificação pública, a delegada do MP revia a sua decisão e o Carnaval de Torres ficava novamente livre do espectro da 'censura'. Mas o mal - ou melhor, o bem - já estava feito e nos dias subsequentes a imprensa haveria de debitar páginas de inflamada e cívica prosa denunciando as sempre latentes ameaças à liberdade. E o 'povo' de Torres - cuja média de idades me pareceu rondar os 65 anos - não parou de desfilar e debitar o seu veredicto aos microfones das rádios e televisões: "para mim, aquilo não é pornografia". Fiquei aliviado com tanta modernidade e tanta militância pela liberdade. E só não fiquei verdadeiramente entusiasmado porque, no meio das imagens televisivas exibidas, descobri que no Carnaval de Torres - essa genuína manifestação de humor, modernidade e liberdade - iria desfilar também um falo gigante apontado ao céu em estado de alerta sexual e um boneco enorme do Cristiano Ronaldo com um testículo de fora. E, salvo melhor e mais moderna opinião do que a minha, isto não tem nada que ver com humor ou liberdade, mas apenas com boçalidade e mau gosto - e sobre isso não li uma só linha em toda a imprensa. Convém dizer, aliás, que o Carnaval à portuguesa, inspirado nos corsos brasileiros, está para o Carnaval brasileiro como a água-pé está para a caipirinha. É, seguramente, dos momentos em que mais apetece fugir daqui, de tal maneira a exibição do humor luso se torna ridícula, patética e deprimente. O Carnaval brasileiro, no Rio e não só, é um espectáculo cénico e visual exuberante, preparado durante um ano inteiro, reunindo as melhores escolas de samba, os melhores músicos, os melhores letristas e compositores, unidos num tema que tem sempre que ver com a história do Brasil ou com a História Universal (este ano, por exemplo, uma das escolas do Rio assinalava os 200 anos do nascimento de Darwin). Goste-se ou não, o Carnaval brasileiro é hoje reconhecido como uma manifestação cultural de massas única no mundo. O nosso, espalhado por várias terras de 'tradições carnavalescas', não tem nada que ver com isso: é um corso trapalhão e pindérico, 'abrilhantado' por tristes vedetas, histéricas de alegria contratual, e onde os temas são invariavelmente os mesmos: a piada política demagógica e a ordinarice rasca. Parece que isto traz muitos turistas às terras e anima o comércio local: ainda bem. Desejo-lhes longa vida, mas não me obriguem a confundir isto com humor ou liberdade criativa.
Ainda o 'escândalo de Torres' borbulhava na imprensa e já rebentava o escândalo da 'censura' numa feira do livro em Braga. A PSP, chamada por alguns vulgares cidadãos pais de família, no uso de um vulgar direito de cidadania, entendeu apreender alguns exemplares de um livro exposto chamado "Pornocracia" - de que ninguém tinha ouvido falar, mas que tinha a particularidade de reproduzir na capa o célebre quadro "A Origem do Mundo", de Gustave Courbet, um grande plano realista de um sexo feminino. Ai, Jesus, o que os polícias foram fazer! Confundiram uma obra de arte com pornografia, atentaram contra a liberdade do editor, do livreiro e dos organizadores da feira, que outra coisa não visavam do que divulgar a arte e a literatura! O estimável jornal "Público", por exemplo, sempre na vanguarda do politicamente correcto, fez disto um caso gravíssimo e, para mostrar a sua solidariedade com mais esta ameaça à liberdade, deu aos leitores meia página com o Courbet. E, no dia seguinte, claro, a PSP pedia desculpas por ter confundido um "nu artístico" com pornografia. Eu, por acaso, até gosto do quadro e exactamente porque ele é chocante e perturbante. Não é, de forma alguma, um simples nu artístico e foi pintado de encomenda para o não ser: não tem nada que ver, por exemplo, com "La Maja Desnuda" do Goya ou as senhoras anafadas do Rubens. Está na zona indefinível de fronteira entre o erotismo e a pornografia, como as fotografias de Mapplethorpe, dependendo da sensibilidade e da abordagem de cada um. É uma pintura para ser vista no enquadramento que lhe cabe (o museu onde está ou uma exposição onde as pessoas sabem ao que vão), não para ser reproduzida, por exemplo, num cartaz de rua ou num anúncio de televisão. Ora, uma feira é um local público e, tanto quanto sei, quem se queixou foram pais, incomodados com a sua exposição a crianças. E eu acho que eles têm, pelo menos, razões que merecem ser ponderadas, por bom senso e bom-gosto. A desculpa da arte ou do erotismo não serve para tudo. As coisas têm o seu contexto e a sua liberdade própria. A liberdade de atirar o nu explícito de Courbet à cara de quem passa e o não procurou, de um pai indefeso que passeia uma criança pela mão numa inocente feira de livros, é uma falsa liberdade. Não fosse este novo saloismo de termos o terror de não ser 'modernos', e perceberíamos que a liberdade não consiste em fazer tudo o que se quer, quando isso agride os outros. Mesmo que aquilo que agride os outros seja, para nós, perfeitamente aceitável. Só os ignorantes é que acham que a liberdade é fácil de gerir.

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